COLABORE

Retratos da tragédia socioambiental em Canoas (RS)

Áreas de Atuação

Famílias abrigadas na ULBRA e representantes de associações de economia popular e solidária falaram sobre seus dramas e expectativas

Publicação: 25/06/2024


Foto: saguão da ULBRA, em Canoas 


A chuva forte começou em 27 de abril de 2024, e seguiu sem parar, sobrecarregando as bacias dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos, Gravataí, que transbordaram. Em Canoas, assim como em outros municípios, a água avançou sobre casas, pessoas e animais. Era difícil acreditar no que estava acontecendo. E, justamente porque nunca tinha acontecido tamanha tragédia, algumas pessoas resolveram ficar nos imóveis, tentando proteger das inundações e dos ladrões o que construíram com anos de trabalho. Quem ficou, teve de ser recolhido depois em barcos. 

Roseli Pereira Dias, integrante da Cáritas Regional RS e moradora de Canoas, deixou sua casa pouco tempo antes de o imóvel ter sido coberto pela água barrenta e cheia de óleo, no dia 3 de maio. Foi socorrida pela solidariedade de uma amiga, e passou a fazer o que a Cáritas RS faz em situações de emergência: somou-se à solidariedade de muitas outras pessoas, igrejas e instituições que abriram suas portas para acolher as pessoas desabrigadas. 

Em Canoas, cerca de 7 a 8 mil pessoas desabrigadas foram levadas para o campus da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Este que foi um dos eventos climáticos mais dramáticos vividos no estado do Rio Grande do Sul atingiu, somente em Canoas, 150 mil pessoas.

Nos dias que se seguiram, Roseli percorreu os corredores da ULBRA com sua câmera de celular como se ela fosse nossos olhos e ouvidos.  Assim, colheu depoimentos, histórias, dores, medos e expectativas de pessoas ainda incrédulas, assustadas e preocupadas com o presente e o futuro. Seguem abaixo alguns destes depoimentos.  

Para assistir aos vídeos com os depoimentos, clique em https://www.youtube.com/playlist?list=PLKB4fa-lep2j1fN2tIhBto1aIDFMiGb-r


Voluntariado recebeu população desabrigada 


O salão de entrada da ULBRA ficou lotado com doações de roupas, algumas ensacadas ainda, outras sendo disputadas a mãos estendidas, afoitas, ansiosas. Os lanches e outros alimentos foram cuidadosamente distribuídos em ilhas formadas por mesas e cadeiras. Em outro canto estavam as garrafas de água, noutro as caixas com material de limpeza. Pessoas de todas as idades se reuniram ali para ajudar e dar apoio. Estudantes e profissionais de fisioterapia, psicologia, informática, entre outros, foram prestar serviço voluntário. Formaram-se filas para preencher os dados em computadores. O objetivo era tentar diminuir a confusão de documentos e identidades, bem como acessar serviços. 

Na parede de uma das salas, um relógio grande encostado em uma parede marcava as horas – um tempo que parou com a emergência climática, em dias que já viraram História e que, espera-se, sirvam de lição sobre a necessidade de respeitar os direitos da natureza e da população, com políticas públicas e cuidados. Afinal, “está tudo interligado”, como anunciou o Papa Francisco. 


Sem peixe, sem sustento 


A água ultrapassou o segundo piso da casa do irmão de Marinês Gusmão Brião, moradora do bairro Fátima. Ela e a família, todos pescadores, saíram rapidamente em direção à faixa de carros, onde foram socorridos. São 22 pessoas, que passaram a ocupar um uma sala de aula no campus da ULBRA. Os colchões foram distribuídos em frente ao quadro de giz, lado a lado, espalhadas pelos cantos, organizando o espaço como podem. 

“Ver aquilo vindo com ondas, água abaixo, o dique arrebentando, foi muito triste”, falou Marinês. Três irmãos e seis sobrinhos ficaram na casa, para evitar roubos.

Barbeiro solidário, pedido de ajuda


Mesmo quem perdeu tudo o que tinha se disponibilizou a contribuir com o coletivo de alguma forma. No corredor perto da escadaria de um dos andares, William Figueira Tavares contou como conseguiu um aparelho de barbear emprestado e passou a oferecer suas habilidades. Em vez de um pente, usava uma escova de dentes para ir tirando os pelos recém cortados, dando o arremate num corte cheio de curvas e detalhes. “A gente acabou saindo com água no pescoço, tendo que pedir socorro”, contou ele, que morava no bairro Harmonia. “Se puderem ajudar, contribuir com alguma coisa, a gente agradece”, pediu.


Dias de separação e agonia antes de reunir a família 


A família Brás passou por momentos de angústia quando parte dela foi levada para a ULBRA, e duas pessoas ficaram cuidando da casa em meio à enchente. Sem ter notícias de como estava o marido, o irmão e o vizinho que ficaram para trás, Débora da Silva Brás passou dias agoniada. Ela e oito filhos saíram às pressas do bairro Mathias Velho. Débora tinha ido checar o dique pouco tempo antes e percebeu que a situação era mais grave do que pensavam. “Meu Deus, o que vou fazer?”, pensou.  “Eu não acreditei, só quando vi o tamanho da gravidade”, contou. Ninguém sabia nadar. Foram levadas nas costas pela mãe e as irmãs mais velhas para o campus da ULBRA.

Mario, marido de Débora, calculou que ficou três dias embaixo da água na Mathias Velho, tentando proteger a moradia junto com o cunhado. “Eu fiquei pra cuidar o pouco que a gente tem”, explicou. Nesse tempo, foi dado por desaparecido. Acabou sendo resgatado também. Quando foi entrevistado, já na ULBRA, eles estavam se recuperando de pneumonia, doença agravada pelo desespero de ter perdido tudo o que tinha. “A preocupação da gente é com os pequenos...alimentação, até se resolver tudo, de onde é que vai sair? Tem quatro que precisam de mamadeira, o que fazer? Eu sou autônomo, trabalho em obras, não tenho fundo nenhum, como é que eu vou me virar com estas crianças? ”, disse Mario. 

Na ULBRA, Graziela a Gabriela, as filhas mais velhas, se ofereceram para atuar como voluntárias. “O que me motivou foi ajudar as pessoas”, afirmou Gabriela. “Ajudar a dar alimento para elas”, completou Graziela. 


Desespero tentando fugir da enxurrada


“Quando a gente viu, já tava com a água no pescoço, não tinha como ir para lado nenhum”, descreveu Marcos José dos Santos Silva, morador do bairro Mathias Velho, que também ficou abrigado na ULBRA. Vestindo roupas doadas, no corredor do campus ao lado da família, ele agradeceu a bondade alheia.

Havia passado uma madrugada tensa procurando a mulher e os filhos, que haviam saído antes para o apartamento de outro familiar, no bairro Fátima, achando que ali estariam mais seguras porque ficava em uma região mais alta. Foi um erro. O bairro Fátima alagou antes. Quando a água começou a entrar no apartamento da filha, Liane dos Santos de Almeida, um outro filho e duas filhas e netos saíram. A situação foi ficando ainda pior. “A água chegou ao pescoço, não conseguimos mais nem seguir em frente, nem voltar”, descreveu Jéssica de Almeida Silva, uma das filhas. Colocaram as crianças que carregavam nos ombros em cima de um muro e se seguraram ali, pedindo ajuda para não serem levados pela enxurrada. 

Desesperado, Marcos entrou noite adentro buscando um barco que pudesse encontrar sua família. Era madrugada quando dois rapazes em um bote o ajudaram a encontrar os familiares. Todos foram levados de volta ao apartamento da Mathias Velho para serem resgatados no dia seguinte por um barco até chegar à ULBRA. 

“Meu filho voltou para água para ajudar a resgatar as pessoas para dentro do barco”, observou Liane. “Havia gente com crianças nas costas, ele ajudou muito e continua ajudando aqui”, acrescentou, orgulhosa. 

Ninguém ali é ingrato: claro que reconhecem que estar vivo é, acima de qualquer bem material, o mais precioso.  “A gente tem que viver cada momento de cada vez, e agradecer que estamos vivos”, disse Marcos. Mas ele também entende que será preciso entrar na lista de milhares de pessoas do Rio Grande do Sul que vão precisar reconstruir do zero suas vidas. “A gente mora em vila, e sabe que não vai encontrar a casa, nada. Todos os teus vizinhos, açougueiro, padeiro, o mercado...vai demorar muito para reconstruir isso. Não é uma pessoa, é o todo: o comércio, os empregos. A minha firma era de pet - se eu chegar a reabrir lá, vou vender para quem? ”, questionou.  


EMERGÊNCIAS CLIMÁTICAS E ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA 

Eva Dornelles de Lacerda, da Pastoral da Criança e Padaria Comunitária, e Lucy Dalva Lopes de Oliveira, da Associação Horta Comunitária União dos Operários (Hocouno), ambas do bairro Mathias Velho, em Canoas (RS), contam nestes vídeos o drama vivido durante as inundações. 


Para assistir ao vídeo de Eva, clique AQUIhttps://youtu.be/YPPxDWLsltk



Para assistir ao vídeo de Lucy, clique AQUIhttps://www.youtube.com/watch?v=nMlrJdx4bIk




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